Burckhardt

"Agora eu sei que jamais poderei ser verdadeiramente feliz de novo longe de Roma", suas ruas, seus jardins - uma cidade onde, por um lado "não há o menor sinal de indústrias" e, por outro, "o lazer fez com que a polidez florescesse feito uma arte."



(Lamento do suiço Jacob Burckhardt em 1846 quando abandonou a cidade itálica. Tornou-se célebre com "A Cultura no Renascimento na Itália" em 1860.)



sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Texto pós-moderno do historiador derrotado ou Cavalo Rampante



Não se sabe de alguém que tenha colocado moldura em um quadro em branco, mas se sabe de quem já fez bibliografia para um curso que não seria seu, não se profetiza o passado e sim se escreve história, mas no presente eis a situação vivida e sofrida por um ente que viu a realidade em si traçar linhas mais duras que as que ele pensa poder especular nos escritos proféticos do passado. É o presente, tira-se o "era uma vez" e coloca-se o "é uma vez" um cavaleiro que sequer alguém sabia o nome. Seu anonimato era apenas inexistente para os seus mais próximos. O restante dos cavaleiros e cavaleiras jamais incluiam o dito espectro em suas conversas e como jamais é palavra por demais taxativa e positivista, talvez se lembrassem do dito cavaleiro, mas nunca de seu nome e sim de sua característica mais marcante; possuia um cavalo alpino, de grande porte, crina loura, pelo branco, relinchar viril, galope firme, postura ereta, jeito errante de cavalo exótico e que fazia a todos mais atenção que o cavaleiro, por isso às raras citações do sujeito eram sempre como "aquelo do cavalo alpino".

É então um concurso de cavalaria. Todos se apresentam a três gran-nobres de cerimônia no castelo na expectativa se assumir o direito de cavaleiro real da ordem republicana III e dos aspectos contemporâneos da República daquelas terras pra lá das bandas de nossa serra. Dentre os cavaleiros ares empolados de confiança, modéstias mal disfarçadas por agires de nervosismo, elogios rasgados misturados a papiadas de campanha. Todos se elogiam especulando um ao outro quem seria o cavaleiro nomeado, uns diziam ser o outro, quase que como uma suruba feudo-vassálica de troca de cortesias, um dom e contra-dom patético onde se elogiava esperando elogios e todos querendo falar por si mais do que por outro. Um cavaleiro entretanto permanecia menos eufórico; eis o cavaleiro do cavalo alpino, certamente se sociabilizava com os demais, contudo era sóbrio, seus olhos ainda que não totalmente abertos pela sua fisionomia viam os demais fazendo especulações de quem seria o cavaleiro escolhido sem que ele fosse incluido, nem que gentilmente, em um único palpite.


Um cavaleiro historiador de terras distantes está especialmente incluído nessa narrativa do tempo presente, sabia que não teria muitas chances de ser nomeado cavaleiro real mas estava lá e aos sabores de alguns comentários elogiosos de seus companheiros passou a se considerar como potencialmente capaz de ser então o escolhido. O historiador logo pôs-se a especular também quem seria o nomeado, indicou de forma galante uma senhorita mui-jovem e bela que se prestava ao mesmo concurso, mas no fundo parecia querer dizer, o historiador, que em vista de tudo, ele mesmo seria o futuro cavaleiro real. Ele olha o cavaleiro do cavalo alpino, troca palavras com ele, fala de suas impressões e sequer vê o cavaleiro do cavalo alpino como seu rival em altura.


Assim o via o historiador e todos os demais. Talvez o próprio cavaleiro o visse também dessa forma, mas não se pode ter certeza. Era como se tal cavaleiro estivesse morrido, todos davam a ele o mesmo crédito de um morto, ou seja, nenhum, para alcançar o título. Assim todos foram convocados, cada uma a sua vez, pelos três gran-nobres de cerimônia para que contassem suas bravuras e aquele que mais os impressionasse seria então o ou a escolhido ou escolhida.


Todos se empenharam em impressionar as três figuras com ares de sapiência. Cada um que saia do gabinete vinha ainda exausto do quanto havia se esforçado na arguição. A mui-bela senhorita foi uma das primeiras e de lá voltou rubra e sorridente para ter novamente com os demais na cúpula de espera e lhes contar como foi o processo. Após outros, lá se foi o cavaleiro do cavalo alpino, meio titubeante entrou na cúpula, andou meio que de esguelha e foi sem causar maiores impressões aos seus rivais, foi como que o merecedor da possibilidade de participar. Após ele foi o historiador, andar firme, postura resoluta, ares de ser o que pensa ser e tudo mais. Fez de tudo para impressionar os grã-mestres de cerimônia, até mesmo levou um quadro em branco com moldura, talvez ele pensasse que ali repousa sabedoria e criatividade, contou suas bravuras nas terras distantes de onde vinha, fez-se de linguajar pomposo e saiu com ares de nobreza da cúpula tal como Júlio César saíra da Gália.


Assim outros cavaleiros foram. Tão logo viera um grã-mestre com um papiro no qual estava o nome do cavaleiro a ser nomeado. Todos se avolumaram frente ao documento pregado numa parte própria da parede e eis a surpresa que pelo formato deste texto todos já esperam; o nomeado fora o cavaleiro do cavalo alpino, eis o improvável, todos engoliam em seco ou soltavam exclamações mal disfarçadas da escolha! O cavaleiro mesmo ficou atônito, pasmo, sorria e aceitava os cumprimentos de seus rivais derrotados, desses cumprimentos só sei que o do historiador era sincero, o dos demais ignoro se o eram ou não. E nisso o cavaleiro que era então mal considerado, pouco lembrado, ameaçava aos demais tal como faria um morto, fulgurou-se em seu cavalo alpino, tornou-se maior que todos os demais, de morto virou renascido, estava re-nato ele, todos o viam de baixo para cima, era renascido então, era o cavaleiro da ordem real. Agora que renascera não era mais o cavaleiro do cavalo alpino, mas sim o cavaleiro que a todos derrotou e em seu cavalo branco saiu-se vitorioso e rampante, agora conhecido como o grã-cavaleiro, o mestre dentre todos, aquele que se tornou o maior. O que terá ele feito para impressionar tanto os três grã-nobres de cerimônia?

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A História entre incertezas e inquietudes


A História entre incertezas e inquietudes é o subtítulo do livro do historiador francês Roger Chartier publicado pela Edufrgs no Brasil em 2002 intitulado "À Beira da Falésia". A escolha desse subtítulo como endereço deste blog na internet se situa na perspectiva de análise que ele carrega em si e queconvém com a preocupação de analisar o conhecimento histórico que temos neste blog. Acontece na obra desse historiador que escreve na terceira geração dos annales (pós anos 70) a contemplação do conhecimento histórico muito mais como uma "representação" que se faz do passado do que como uma verdade empírica do ocorrido no passado. Assim, usa-se a metáfora à beira da falésia. Falésia é um tipo de precipício no qual a história estaria andando em sua beira ameaçada de cair em completo relativismo ao se agregar às representações, ou em uma palavra, ao ser concebida como uma leitura do passado e não como a verdade do passado. Assim se dabate o seguinte; como podemos associar o conhecimento histórico a uma representação feita no presente do historiador sem com isso torná-lo por demais subjetivo, por demais desapegado de um senso de veracidade que o torne como uma narrativa literária?

Apologia da História

O título deste blog faz referência à obra do historiador francês Marc Bloch (1886-1944) produzida nos últimos dias que antecederam ao seu fuzilamento em 16 de junho de 1944 por integrar a resistência francesa frente à ocupação alemã no contexto da II Guerra Mundial. Marc Bloch não conseguira chegar até o fim de seu texto, temos a Apologia da História ou Ofício de Historiador como uma obra inacabada, escrita na adversidade de uma situação de guerra na qual o próprio autor lamenta a inacessibilidade a seus livros. Assim mesmo, temos neste manual uma obra-prima do pensamento metodológico no campo da historiografia e uma síntese do pensamento historiográfico que norteou a primeira geração da revista Annales fundada por Bloch e Lucien Febvre em 1929. Revista essa que valorizou uma nova forma de pensar o passado ao estudar a História dos homens no tempo, propunha ver sociedade em conjunto a despeito da análise das grandes personalidades e, sobretudo, valorizar todas as ações sociais no conhecimento histórico, bem como se valer de todas as formas possíveis de documentação e vestígios para reconstituir essa trajetória humana no tempo, respeitando as singularidades de culturas e tempos diferentes, mas sempre colocando o historiador como o ogro atrás de carne humana nos vestígios do passado, incitando o mesmo a ser inquisitor frente à fonte que estuda, interrogá-la, explorá-la a fim de reconstituir o passado que ela oferece.
Nomear este blog com o título da obra de Bloch visa justamente nortear o campo das discussões que aqui poderão ser desenvolvidas. Ou seja, busca-se fazer deste espaço um campo de reflexões da escrita da História, bem como de discussão das várias obras, teorias, historiadores e demais temáticas que rondam o campo do historiador no Brasil e no mundo.